terça-feira, 30 de julho de 2013

O QUE QUEREM OS ÍNDIOS

Revista Veja, Edição 2295, de nov 2012


A mais completa pesquisa de opinião já realizada nas aldeias brasileiras revela como os índios vivem e o que eles esperam do futuro. A maioria quer progredir socialmente, mas ainda depende do governo para sobreviver

Leonardo Coutinho

Uma das principais reclamações dos índios é a de não serem ouvidos. De tempos em tempos, eles tingem o corpo de vermelho e negro em sinal de guerra e saem a brandir suas bordunas, arcos e flechas em frente a representantes do governo para chamar atenção para suas reivindicações. 

Na maioria das vezes, a sociedade brasileira só fica sabendo de suas demandas por meio de intermediários - padres marxistas ou ongueiros que fazem com que os moradores das cidades acreditem que os problemas indígenas consistem em falta de terras e em obras de infraestrutura nocivas ao ambiente. 

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha a pedido da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) pôs fim a essa lacuna. É o mais completo levantamento das opiniões dos índios brasileiros já realizado. Durante 55 dias, os pesquisadores visitaram 32 aldeias em todas as regiões do país e entrevistaram 1222 índios de vinte etnias. Trata-se de uma amostra robusta maior, proporcionalmente, do que a que costuma ser usada nas sondagens eleitorais. 

As respostas revelam que os índios têm aspirações semelhantes às da nova classe média nacional, ou seja, querem progredir socialmente por meio do trabalho e dos estudos. Eles sonham com os mesmos bens de consumo e confortos da vida moderna, sem deixar de valorizar sua cultura. Muito do que é apresentado pelos intermediários da causa indígena como prioridade nem sequer aparece na lista das preocupações cotidianas dos entrevistados. "A pesquisa libertará os índios da sua falsa imagem de anacronismo", diz a presidente da CNA, a senadora Kátia Abreu (PSD/TO). Nove em cada dez índios acham melhor morar em casa de alvenaria do que numa maloca. Oito em cada dez consideram muito importante ter um banheiro sob o teto em que vivem, um conforto desfrutado por uma minoria. Quase metade dos indígenas adoraria tomar uma ducha quentinha todos os dias. O grupo de índios donos de automóveis é seis vezes a média dos brasileiros de classes C e D. "Ninguém deixa de ser índio por querer viver bem. É inaceitável que as regras de como devemos ser continuem sendo ditadas de cima para baixo sem levar em consideração a nossa vontade", diz Antonio Marcos Apurinã, coordenador-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, que representa 160 etnias. Segundo Apurinã, por causa da falta de condições adequadas nas áreas demarcadas, muitas aldeias passam por um êxodo sem precedentes. Há quatro anos, 12500 índios viviam na periferia de Manaus. 

Hoje, estima-se que mais de 30000 vivam apinhados em construções precárias na cidade. Se a criação de reservas é alardeada como a demanda mais urgente dos povos indígenas, por que eles as estão abandonando para viver em favelas? Com a palavra, os índios. 

O problema mais citado é a precariedade dos serviços de saúde. Eles se queixam principalmente da falta de medicamentos farmacêuticos (que eles valorizam tanto quanto os remédios tradicionais) e de médicos. Em segundo lugar está a falta de emprego. "Nós não vivemos mais como nos meus tempos de infância. A nova geração compreende a vantagem de ter um emprego, uma renda. Ela quer ter roupa de homem branco, celular e essas coisas de gente jovem. 

Os governantes precisam aprender que nossos filhos querem ter tudo que os filhos do homem branco têm. Falar português, ir para a universidade e ser reconhecidos como brasileiros e índios", diz o cacique Megaron Txucarramãe, um dos mais respeitados líderes caiapós, de Mato Grosso. A questão fundiária é um tema marginal. Quando instados a falar sobre seus problemas individuais, os entrevistados nem sequer citaram a criação ou a ampliação de reservas. O assunto só ganhou relevância quando aplicado aos índios em geral. Nesse caso, a demarcação de áreas é o segundo problema mais mencionado, depois de saúde. Isso significa que, quando pensam nos outros índios, os entrevistados são tão influenciados pela campanha a favor da demarcação de reservas como o restante da população. Ao avaliarem sua situação pessoal, porém, apontam outras prioridades. "Quando nos fazem acreditar que precisamos de mais reservas, os problemas mais urgentes são esquecidos", diz o índio macuxi Jonas Marcolino, de Roraima, formado em matemática e estudante de direito. É claro que, quando questionados se gostariam de ter mais terras, a maioria dos índios entrevistados disse que sim. Se a pergunta fosse feita a um fazendeiro, qual seria a resposta? A mesma, evidentemente. O sociólogo Bernardo Sorj, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, explica que, ao conviverem com o resto da sociedade, é inevitável que os povos indígenas absorvam valores e expectativas da cultura nacional e aspirem aos mesmos direitos. "Trata-se de um processo de transformação crivado de tensões que exige dos índios um esforço para aliar a tradição à modernidade. Cabem aos demais brasileiros compreensão, respeito e apoio para que eles façam essa síntese, que será sempre instável, entre a ancestralidade e a vida moderna", diz Sorj. Missionários e militantes que tentam resumir a questão indígena à expansão das reservas, anotem: o que os índios mais querem é saúde, emprego e saneamento.

O sonho da modernidade A pesquisa do Datafolha encomendada pela CNA mostra que os índios aspiram às mesmas conquistas materiais e sociais almejadas pela maioria dos brasileiros. Para eles, não há contradição entre a identidade indígena e os confortos e desafios da vida moderna, o que inclui trabalhar e estudar como qualquer outra pessoa. Eles querem cidadania plena e não desejam viver como os antepassados viviam cinco séculos atrás. Foram entrevistados 1222 moradores de 32 aldeias indígenas em todas as regiões do país.

sábado, 6 de julho de 2013

A GUERRA DOS MUNDURUKUS

REVISTA ISTO É N° Edição: 2277 | 05.Jul.13 - 20:40 |

Quem são os índios que ocuparam Belo Monte, expulsaram de suas terras pesquisadores envolvidos com a construção de usinas no rio Tapajós e foram chamados a negociar com o governo

Laura Daudén







TRADIÇÃO GUERREIRA
O cacique tupinambá Babau se junta aos mundurukus em Belo Monte (à esq.)
e em Brasília (no alto e acima), onde exibem foto do índio morto pela
Polícia Federal em 2012: relatório detalha violência contra a etnia

O mais novo oponente do governo federal na Amazônia não é de partido ou sindicato nem se organiza atrás de um movimento social. São os índios mundurukus, que somam mais de 13 mil e há séculos ocupam parte do Amazonas, do Pará e de Mato Grosso. Na historiografia, são descritos como guerreiros e por seu costume de cortar e mumificar a cabeça dos inimigos. Por isso, foram primeiro combatidos e depois utilizados pelo colonizador português para garantir a ocupação do interior da Amazônia. Mais tarde, durante os ciclos da borracha, sucumbiram à indústria seringueira e foram obrigados a deixar suas terras no interior para se juntarem aos rios, em particular ao Teles Pires, ao Juruena e ao Tapajós. Hoje, mais de 240 anos após o primeiro contato com os brancos, é por esses rios que eles lutam. Os mundurukus querem ver garantido o direito consagrado na Convenção 169 da Organização Mundial do Trabalho e na Constituição de serem consultados antes do avanço das grandes obras de infraestrutura na Amazônia. Com isso, motivos para a crescente tensão com o poder público não faltam. O último relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, recém-divulgado pelo Conselho Missionário Indigenista (Cimi), esmiúça os episódios de brutalidade que eles vêm sofrendo. Mas o sangue guerreiro dos mundurukus não os deixa recuar.

Uma das maiores preocupações da etnia é com o complexo de pelo menos oito hidrelétricas que devem ser implantadas na bacia do rio Tapajós e em seus afluentes até 2021. “O governo diz que, querendo ou não, o projeto vai ser feito. Isso é um desrespeito à lei”, diz Maria Leusa Kabá, vice-coordenadora da Associação Indígena Pusuru, uma das organizações que representam os mundurukus. Segundo Adelar Cupsinski, advogado do Cimi que assessora os indígenas, as obras previstas inundarão 50 das 118 aldeias deles. “O governo só fala dos benefícios, nunca dos impactos”, completa Leusa. Sua angústia explica a luta aberta que os mundurukus hoje travam com o governo federal, acirrada nos últimos meses a ponto de o Planalto suspender a execução de estudos de viabilidade na região.



Para se fazerem ouvir, os indígenas ocuparam a usina de Belo Monte em duas ocasiões, mantendo a obra paralisada por 17 dias em maio e junho – o maior período que se tem registro. O governo decidiu, então, enviar dois aviões da FAB à região e trazer os cerca de 140 indígenas mobilizados no canteiro de obras para negociar em Brasília. Lá, reuniram-se com Gilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, e ocuparam o edifício da Funai. Ao retornarem às aldeias, dias depois, expulsaram de suas terras funcionários a serviço da Eletrobras que executavam estudos para a implantação de hidrelétricas. “Eles falam que atrapalhamos os trabalhos deles. A gente fala que eles estão atrapalhando o nosso, a nossa vida”, afirma Cândido Munduruku, presidente da Pusuru.

O grande número de cartas de apoio que eles receberam de outras etnias ao longo dos últimos meses mostra que eles não estão sozinhos nessa guerra, que já chegou ao Ministério Público Federal, onde correm pelo menos três processos em nome dos indígenas: dois tratam das usinas de Teles Pires e São Luiz do Tapajós e exigem que, antes de sua implantação, as comunidades afetadas sejam consultadas. Após duas decisões favoráveis, a Justiça Federal do Pará suspendeu a medida. A terceira investigação tem como alvo o ataque da Polícia Federal à aldeia munduruku de Teles Pires em novembro de 2012 durante a Operação Eldorado, deflagrada para desmantelar redes de garimpo e comércio ilegal de ouro. O índio Adenilson Munduruku foi morto com três tiros durante a ação, que também feriu dezenas de pessoas e causou prejuízo ao patrimônio dos moradores. Em seu depoimento à Procuradoria-Geral da República, Iandra Waro, filha do cacique de Teles Pires, afirma que “os policiais acreditavam que, acabando com o garimpo, os índios aceitariam a barragem”.

“Sabemos que há um grande passivo deixado por essas obras, um passivo social e ambiental. Isso gera desconfiança, uma espécie de mecanismo de defesa nessas populações”, admite Paulo Maldos, secretário de Articulação Social da Secretaria-Geral da Presidência. Sem um aceno concreto do governo de que seus pleitos serão levados em consideração, os índios prometem cerrar fileiras. Foi marcada uma reunião de lideranças para o dia 3 de agosto a fim de organizar a resistência. “Eles sabem que, depois de Belo Monte, são os próximos”, resume o procurador da República Felício Pontes.

Fotos: Ruy Sposati/Ag. Raízes; Adriano Machado; ED FERREIRA/ESTADãO