CARLOS WAGNER E CARLOS ROLLSING*
AGRICULTORES X ÍNDIOS
A morte de duas pessoas no norte do Estado, historicamente marcado por confrontos por terras entre agricultores e índios, aumentou a tensão na região que hoje deve ser visitada por representantes do Ministério da Justiça e da Funai.
Assessores do gabinete do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, desembarcam na manhã de hoje em Porto Alegre, seguindo logo depois para Faxinalzinho, pequena cidade agrícola do Norte do Estado. Vão iniciar um processo de mediação da disputa entre índios e pequenos proprietários de terras.
O clima de tensão chegou ao ápice no final da tarde de segunda-feira, quando dois irmãos agricultores foram mortos, possivelmente a tiros e pauladas, durante conflito com índios caingangues que reivindicam a demarcação de terras na região.
Ainda na segunda-feira à noite, o governador Tarso Genro recebeu uma ligação de Cardozo. O ministro queria saber detalhes sobre o enfrentamento. Ele ouviu um relato de que “a tendência é de acirramento ainda maior a partir de agora”.
Os irmãos Alcemar e Anderson de Souza, de 41 e 26 anos, respectivamente, foram velados e enterrados ontem em Faxinalzinho, cidade de 2,5 mil habitantes. Em protesto pela demora no processo de demarcação de terras, que já se arrasta por 12 anos, índios bloquearam estradas de acesso à cidade com toras de madeira. Como os caingangues não estavam no local no final da tarde de segunda-feira, agricultores removeram os obstáculos para permitir a passagem de um caminhão com ração. A maioria se retirou, mas os irmãos permaneceram à espera de outro veículo. À espreita em um matagal, um grupo de índios teria percebido a movimentação e iniciado a perseguição que teve como desfecho a morte dos colonos. A investigação está sob responsabilidade da Polícia Federal.
A tensão fez o prefeito da cidade decretar estado de calamidade e recomendar que as pessoas ficassem em casa. Faixas de luto foram estendidas pelo município.
O cacique Deoclides de Paula, 42 anos, disse que o bloqueio de estradas foi uma forma de protestar contra o ministro Cardozo, que teria se comprometido a viajar para Porto Alegre no último dia 25 para tratar das reivindicações indígenas.
– Se existe alguém responsável pela morte dos agricultores, é o ministro. No momento em que ele não veio, gerou um momento de incerteza entre a comunidade – afirmou o cacique.
Defensor dos agricultores e recentemente envolvido em polêmicas sobre o tema, o deputado federal Alceu Moreira (PMDB) protesta contra o uso da previsão constitucional de que os agricultores somente possam ser indenizados por benfeitorias – como as casas que construíram –, mas não pelas terras hoje ocupadas por eles. Isso resultaria em pagamentos ínfimos em caso de os produtores terem de deixar os locais onde vivem.
– As pessoas estão se organizando. Basta um telefonema para os outros saírem em socorro. Os agricultores têm escritura, vão morrer nas terras se for preciso – assevera o parlamentar.
O tom de Alceu é criticado pelo deputado estadual Jeferson Fernandes (PT).
– Não podemos colocar mais lenha na fogueira. Isso aumenta o preconceito contra os índios e incita à violência – diz o petista.
No Estado, calcula-se que 10 mil índios lutem por terras. Conforme o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a área pretendida, entre territórios já demarcadas ou reivindicados, chegaria a 117 mil hectares. Para a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul do Brasil (Fetraf-Sul), isso representaria o desalojamento de 10 mil famílias.
Colaboraram Cláudio Goldberg Rabin e Fernanda da Costa
Uma disputa que vem do século 18
Na história dos conflitos de terra no Brasil, o capítulo referente ao norte do Estado não para de crescer. Indígenas têm reivindicações históricas pela terra e produtores rurais têm documentos comprovando que suas glebas foram compradas do governo.
As disputas territoriais vêm desde o século de 18, mas nessa região, como lembra o professor de história da Faculdade Meridional (Imed) Henrique Kujawa, há quatro momentos históricos. No início do século 20 (entre 1910 e 1918), quando o governo idealizou uma política para trazer os colonos, foram criadas áreas de colonização e reservas indígenas.Mais tarde, diz o autor de três livros sobre a questão da demarcação de terras, entre 1940 e 1960, as áreas foram reduzidas. Naquele período, surgiram reservas de proteção ambiental e parte das áreas indígenas foi vendida para agricultores.
A Constituição de 1988 inaugurou o conceito de ocupação tradicional, que justificava o retorno dos índios aos locais onde tinham raízes históricas. Como explica Kujawa, há divergências na interpretação. A Fundação Nacional do Índio (Funai), Cimi e os movimentos indígenas usam o conceito de ocupação imemorial. Os colonos argumentam com base na história da colonização. A área de Votouro foi demarcada em 1918. Em 1963, foi reduzida e no anos 1990, foi restabelecida. A partir de 2003, conta o professor de História, os índios passaram a reivindicar a ampliação da área.
Um histórico de violência
Levantamento do Cimi no ano passado mostrou que 17 dos 96 territórios em situação de risco ou conflito devido a disputas agrárias estão em solo gaúcho. Em 2013, houve registros de agressões em pelo menos três cidades do norte do Estado.
VICENTE DUTRA - Em novembro, o vigilante de um balneário de águas termais foi agredido por índios que invadiram o local. Eles relataram que o vigia teria atirado no grupo. O balneário fica em uma área de 715 hectares já declarada como indígena.
SANANDUVA - Em julho, uma manifestação de agricultores, após a invasão de uma propriedade por 50 índios, terminou em briga generalizada. Três agricultores e um indígena ficaram feridos. O local fica na área de 1,9 mil hectares reivindicada pelo grupo de índios.
MATO CASTELHANO - Em junho, protesto de índios terminou um agricultor ferido. O grupo bloqueou a rodovia Passo Fundo-Lagoa Vermelha (BR-285) para reivindicar agilidade no processo de demarcação de uma área de 3,5 mil hectares.
ENTREVISTA
“O processo de demarcação é que gera tensão”
Zero Hora – Como estão os processos de retomada de terras indígenas no norte do Estado?
Roberto Liebgott – A maior tensão está no processo de demarcação, que já dura 12 anos e não foi concluído. O que deixa um clima de incerteza tanto para os indígenas quanto para os agricultores.
ZH – Qual a solução?
Liebgott – Onde se comprova que as terras são indígenas, cabe ao governo federal fazer a demarcação e indenizar todas as famílias de agricultores afetadas pela demarcação. Além disso, essas famílias têm o direito de reassentamento em outras terras, o que deve ser feito pelo Incra.
ZH – Qual a origem do conflito?
Liebgott – No final dos anos 1970, houve um processo de reconquista de terras pelos índios. Famílias de pequenos agricultores saíram, foram para Encruzilhada Natalino, em Ronda Alta, exigiram do governo novas terras. Aí nasceu o MST.
ZH – Mas esses produtores rurais têm a propriedade da terra.
Liebgott – Agora o processo é diferente. Tanto o governo federal quanto o estadual lotearam as terras e as entregaram para empresas que adquiriram e venderam os lotes para famílias nos anos 40, 50. Só que as empresas removeram os índios dessas áreas e os levaram para reservas. Mas as reservas ficaram superpovoadas, e os índios acabaram voltando.
ENTREVISTA > Sidimar Luiz Lavandoski
Integrante da direção da Fetraf-Sul
“A fragilidade do governo aumenta os conflitos”
Zero Hora – Qual a proposta da Fetraf?
Sidimar Luiz Lavandoski – Nós partimos do princípio de que a terra nunca foi indígena. As áreas que os índios reivindicam são áreas de colonização centenária. Não existe nada que as diferencie do processo histórico das demais áreas do munícipio. Os grupos que reivindicam essas áreas são dissidentes de outras áreas. Foram expulsos ou saíram de áreas criadas no início do século 20.
ZH – Qual seria a solução?
Lavandoski – Se os índios têm direito à terra e não podem voltar à área de onde foram expulsos, o governo pode comprar áreas de terra a partir do que prevê o Estatuto do Índio e criar novas reservas. O governo deve comprar terras que os agricultores querem vender. Não se pode tirar a terra do agricultor familiar que o próprio Estado vendeu.
ZH – Mas como acomodar os interesses dos dois grupos?
Lavandoski – O problema dos índios não se resolve apenas com terra. Se resolve também com políticas públicas que fomentem o desenvolvimento das áreas das comunidades indígenas. Os índios estão abandonados pelo Estado, as terras são dominadas por caciques que as arrendam. A fragilidade do governo acaba por aumentar os conflitos.