quinta-feira, 29 de maio de 2014

ARCO E FLECHA, ARMA BRANCA OU SIMBOLO CULTURAL?


Instrumento de identidade indígena divide opiniões

ANDRÉ DE SOUZA E CHICO DE GOIS
CLEIDE CARVALHO E EDUARDO BARRETTO
WASHINGTON LUIZ
O GLOBO
Atualizado:28/05/14 - 23h24

Um índio aponta o arco e flecha durante a manifestação em Brasília: confronto com a polícia REUTERS/Joedson Alves


Representantes dos indígenas que participaram de um protesto anteontem em Brasília defenderam o uso do arco e flecha em manifestações. Para eles, os instrumentos devem ser encarados não como arma branca, mas dentro de um contexto cultural. A Polícia Militar (PM), por outro lado, manifestou que se trata, sim, de uma arma branca e que está à procura da pessoa que acertou uma flechada na perna de um policial. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, evitou a polêmica e limitou-se a dizer que cada caso deve ser analisado separadamente.

Ontem, o cacique Marcos Xukuru considerou o ato uma ação “natural” e afirmou que os indígenas vão continuar utilizando arco e flecha nas manifestações para realizarem rituais e se protegerem. Marcos disse que não conhece quem realizou o ataque, mas explicou que o índio utilizou a flecha por se sentir ameaçado pela cavalaria da PM. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que presta assessoria aos índios, observou que o equipamento é utilizado não apenas para guerra ou ataque, mas para caça, pesca e rituais religiosos.

— Nós, indígenas, temos nosso modo de vida, nosso arco e flecha, nossa borduna, que serve para os nossos rituais. Aonde vamos levamos nossos instrumentos. Estávamos dançando, invocando nossos rituais. Os cavalos se assustaram, querendo cair no meio da pista, e de repente já vimos a fumaça das bombas da Tropa de Choque. Se um de nós se sente ameaçado, atacado pelo Estado, qual a reação? É uma reação natural — explicou o cacique.

O coronel Jailson Braz, chefe do Departamento Operacional da PM no DF e responsável pela segurança do protesto, tem opinião oposta:

— A flecha é uma arma branca, sim, pode matar, é proibida.

Na quarta-feira, o Cimi chegou a informar que os índios só podem ser detidos e interrogados pela Polícia Federal (PF). Também de acordo com o Cimi, só o Ministério Público Federal (MPF) poderia apresentar denúncias contra eles, e somente a Justiça Federal poderia julgar eventuais irregularidades ou crimes. A informação foi desmentida pela Fundação Nacional do Índio (Funai), que explicou que os indígenas respondem a processo como qualquer um. Segundo a Funai, desde a existência do Estatuto do Índio, de 1973, “a legislação deixou clara a possibilidade de prisão e encarceramento do índio, ainda que lhe confira um direito especial de semiliberdade”. Mas, para a Funai, o uso de arco e flecha, como de vestimentas e pinturas corporais, deve ser considerado como aspecto antropológico.

Ataque foi inusitado

Ela Wiecko, vice-procuradora-geral da República e coordenadora de um grupo de pesquisa na Universidade de Brasília (UnB) sobre direitos étnicos, corrobora a informação da Funai. Por outro lado, destaca que, no curso do processo criminal, é preciso levar em conta a cultura do índio:

— É uma pessoa como qualquer um de nós. Ele pensa, sente. Agora, naturalmente, ele tem a sua cultura. E mesmo com essa história de estar num carro, de ter uma carteira de identidade, de usar roupa, de andar de avião, isso não descaracteriza a pessoa de ser indígena.

O sociólogo da UnB Antônio Flávio Testa disse que a classificação do arco e flecha como arma branca é uma questão de interpretação:

— É um instrumento de caça, mas o facão também é ferramenta e pode ser visto como arma branca. Vai depender de como será o processo.

Maria Estela Grossi, também socióloga e integrante do Núcleo de Estudos de Violência e Segurança da UnB, disse que o arco e flecha tem um significado simbólico, mas que a polícia precisa se planejar para a presença de armas perigosas em manifestações:

— O ataque a flechas foi inusitado, mas tem um significado simbólico. A flecha é algo próprio do índio. A polícia não pode simplesmente responder violência com violência, com bombas, e também não pode permitir que armas passíveis de perigo sejam levadas para manifestações.

Para o antropólogo Stephen Baines, pesquisador da UnB, o arco e flecha não pode ser considerado arma branca, pois é usado como símbolo da identidade indígena, assim como cocares e pinturas de guerra. Segundo ele, a flecha deixou de ser vista pelos próprios índios como arma e hoje faz parte do reconhecimento de sua cultura:

— A flecha é usada apenas na caça de animais. Os índios têm consciência de que não adianta usar arco e flecha contra pessoas. Nas terras indígenas, utilizam armas de fogo para se proteger. Provavelmente, o disparo da flecha ocorreu num momento de susto diante da ação policial. Se quisessem agredir, os índios teriam levado espingardas.

‘Não é para ferir ninguém’

O cacique Marcos Xukuru, de Pernambuco, que estava na manifestação em Brasília, afirmou que o arco e a flecha fazem parte dos rituais:

— Não é para atacar ou ferir ninguém. Levamos também o maracá, que é usado nas festas indígenas. São coisas do nosso dia a dia, e faz parte da nossa cultura levá-las a outros ambientes.

Segundo o cacique, os índios foram surpreendidos pela ação policial, e os cavalos se assustaram com os maracás:

— Usamos os maracás para invocar nossos espíritos de proteção, para que eles nos protejam e ajudem. Os cavalos se agitaram, e a Tropa de Choque começou a atirar. Até agora não sabemos quem disparou a flecha — afirmou.

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