domingo, 11 de maio de 2014

ENTRE O TIRO E A LANÇA



ZH 11 de maio de 2014 | N° 17793

CARLOS WAGNER CARLOS MACEDO | TEXTOS FOTOGRAFIA


QUESTÃO AGRÁRIA


O TRIÂNGULO FORMADO pelos municípios de Vicente Dutra, Faxinalzinho e Sananduva, no norte do Estado, é o centro de uma guerra entre caingangues e agricultores pela terra. Zero Hora foi à região para mostrar o que move os dois lados



Na longa e sangrenta história do conflito entre caingangues e agricultores no Rio Grande do Sul, a morte a tiros e pauladas dos irmãos Alcemar e Anderson de Souza, no dia 28 de abril, em Faxinalzinho, pelos indígenas, é um capítulo novo e diferente. É a primeira vez que os dois lados admitem a posse de revólveres e espingardas.

A radicalização teve início em 2003, segundo Henrique Kujawa e João Carlos Tedesco, organizadores do livro Conflitos Agrários no Norte Gaúcho: Índios, Negros e Colonos. A Constituição de 1988 assegurou aos índios a retomada de terras que haviam sido usadas para colonização – em sua maioria, reservas já demarcadas. Nos anos 1960, o governo do Estado usou reservas indígenas para fazer reforma agrária, como é o caso de Serrinha, em Ronda Alta. Os caingangues conseguiram retomar Serrinha e outras reservas, um sucesso explicado pelo direito líquido e certo à terra, na opinião de Kujawa. O governo federal indenizou os colonos desalojados pagando benfeitorias, e o governo do Estado, a terra.

A retomada das áreas de reservas no Rio Grande do Sul terminou no começo dos anos 2000. Foi quando caingangues partiram em busca de terras que não tinham sido reservas indígenas oficiais. Em locais onde seus antepassados haviam acampado, a presença era comprovada por laudos de antropólogos da Fundação Nacional do Índio (Funai). Agricultores organizaram-se e trancaram a retomada das terras. Em consequência, os acampamentos indígenas proliferaram: hoje somam 19 no Estado, pelas contas da Funai. Mas o número pode ser bem maior.

Estima-se que, num raio de cem quilômetros de Passo Fundo, existam 102 focos de tensão entre índios e agricultores. Segundo o cacique Deoclides de Paula, 42 anos, do acampamento de Votouro Kandoia, em Faxinalzinho, preso pela Polícia Federal na sexta-feira juntamente com mais quatro caingangues por suspeita de envolvimento na morte dos irmãos Souza, 10 mil índios, dos 35 mil do Estado, disputam terras. A Funai não confirma os números.

O principal aliado dos índios é o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Igreja progressista. A face invisível são os burocratas do serviço público federal. Com os colonos, estão alas conservadoras da Igreja, sindicatos patronais e, novidade surpreendente, a Fetraf-Sul, ligada à Central Única dos Trabalhadores (CUT). Os dois irmãos mortos são as mais recentes vítimas desse fogo cruzado.



Antagonistas preparam-se para enfrentamento


O que irá acontecer no confronto por terras entre indígenas e colonos nos próximos meses no Rio Grande do Sul foi decidido no dia seguinte ao enterro dos dois agricultores e irmãos mortos a tiros e pauladas pelos índios caingangues em Faxinalzinho, pequena cidade agrícola do norte do Estado. Alcemar Batista de Souza, 41 anos, e Anderson de Souza, 26 anos, foram assassinados na tarde de 28 de abril, ao furar um bloqueio de toras de madeira erguido na estrada pelos índios, e enterrados no dia seguinte, ao entardecer, no cemitério de Coxilhão Aparecida, interior de Faxinalzinho.

A manhã do dia 30 iniciou-se com uma chuva grossa e insistente que duraria dois dias. No acampamento caingangue de Kandoia, que ocupa dois hectares dos 2,7 mil que têm a posse reivindicada pelos índios, distante oito quilômetros do centro da cidade, 20 caciques de vários cantos do Estado reuniram-se em um prédio de material, com vidros quebrados e muitas goteiras. Um deles era Deoclides de Paula, que chefia os indígenas responsáveis pela morte dos dois agricultores. Além de cacique de Kandoia – onde vivem 200 famílias de indígenas –, ele também faz parte da Comissão Nacional de Políticas Indigenistas, ligada ao Ministério da Justiça.

Zero Hora documentou o encontro. Os caciques falavam português e caingangue. Ali, eles decidiram não apostar mais nas negociações com o ministério, que já duram mais de uma década.

– O governo é como feijão duro. Só cozinha sob pressão – comparou Roberto Carlos dos Santos, 42 anos, um dos presentes na reunião, líder do acampamento de Rio dos Índios, em Vicente Dutra.

DESINTRUSÃO

A pressão para amolecer o governo foi comunicada por Deoclides no final do encontro. Eles decidiram romper o diálogo com o Ministério da Justiça e fazer as coisas andarem pelas próprias mãos.

– Vamos bloquear as rodovias durante a Copa do Mundo. Iremos demarcar as nossas terras e depois fazer a desintrusão – prometeu o cacique.

Desintrusão significa retirada dos não índios de áreas indígenas. Legalmente, ocorre quando a área é reconhecida como da tribo, o que não é o caso de Kandoia. As palavras do cacique não representam um blefe.

O método usado pelos caingangues é simples. Um grupo cerca a casa do agricultor e dá algumas horas para a família abandonar o local. Isso aconteceu na reserva indígena de Nonoai em 1978.

– Em Nonoai, os índios agiram de maneira legítima porque os brancos eram os intrusos. Mas aqui os intrusos são eles. Isso não vai acontecer – avisou Sidimar Luiz Lavandoski, presidente do Sindicado dos Trabalhadores da Agricultura de Sananduva e coordenador de Conflitos Agrários da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf-Sul).

No dia seguinte ao enterro dos dois colonos assassinados, Lavandoski foi até o gabinete do prefeito de Faxinalzinho, Selso Pelin, onde também estava o presidente da Associação dos Moradores, Ido Antonio Marcon.

A conversa girou ao redor de uma reunião realizada pela Fetraf-Sul na terça-feira, em Passo Fundo, sobre as estratégias de resistência ao cerco indígena às terras da agricultura familiar.

A Fetraf-Sul organiza uma série de manifestações com dois objetivos: demonstrar força aos índios e levar o problema da disputa às ruas dos grandes municípios gaúchos, a fim de esclarecer a população sobre sua causa.

– Uma coisa é certa: os índios não vão tirar ninguém na marra de dentro de sua casa – avisou Lavandoski.



Suspeitas de boatos, extorsão e emboscadas


Emboscadas, extorsão, comentários preconceituosos, boatos sobre invasões e pessoas apavoradas. Essa é a realidade entre colonos e índios caingangues envolvidos na disputa por 1,9 mil hectares em Passo Grande do Rio Forquilha, lugarejo situado entre Sananduva e Cacique Doble, cidades agrícolas no norte do Estado.

O enfrentamento já dura uma década, mas nos últimos dois anos se intensificou, com uma atmosfera de confronto iminente. Parte dos índios envolvidos na disputa saiu da reserva de Charrua, próximo a Sananduva. Até a semana passada, eles tinham invadido e se apropriado de quatro áreas dos colonos que somam 160 hectares, onde vivem 117 famílias caingangues.

Nos 1,9 mil hectares disputados, habitam 152 famílias de pequenos agricultores. A última invasão dos índios ocorreu na terceira semana de abril, quando ocuparam as instalações da Capela Bom Conselho – um salão paroquial, um cemitério e um campo de futebol –, distantes cerca de 15 quilômetros do centro do município.

– A capela é um símbolo para a comunidade. É um absurdo o que estão fazendo – queixa-se o agricultor Oilson Predobom.

Leonir Franco, 24 anos, é o cacique do acampamento Passo Grande da Forquilha. Cercado por seus guerreiros e sentado à mesa no meio do salão paroquial – que foi transformado em um grande dormitório para as famílias indígenas –, o cacique disse saber do simbolismo do local para os colonos. Lembra, contudo, que nos anos 1940, quando agricultores se estabeleceram na área, expulsaram índios que viviam caçando, pescando e trabalhando para os ervateiros – pessoas que colhiam folhas de erva-mate.

Duas índias idosas, Eva Pinto e Jandira dos Santos, relatam lembranças da infância vivida com os pais na região.

– Quando os madeireiros começaram a derrubar o mato, fomos corridos daqui – recorda Jandira.

E Franco acrescentou ao comentário da índia:

– Os agricultores passaram o arado por cima dos cemitérios indígenas e não deixaram rastro.

CABO DE GUERRA

A pedido dos caingangues, os antropólogos da Fundação Nacional do Índio (Funai) fizeram uma pesquisa no Passo Grande da Forquilha e encontraram vestígios de que ali viveram povos indígenas. O resultado do trabalho virou um estudo aceito em 2011 pelo Ministério da Justiça, que publicou uma portaria declaratória reconhecendo a área como de ocupação tradicional indígena – na prática, o passo final de um longo processo para retirada dos colonos do local.

No ano passado, por pressão da Fetraf-Sul e outras organizações, o governo federal suspendeu as fases seguintes do processo de retomada da área, que são a demarcação da gleba e o levantamento das benfeitorias das propriedades para serem indenizadas. Em protesto, o cacique Franco iniciou a demarcação da área por conta própria.

– Eles invadiram 12 hectares da minha propriedade, e estou deixando de colher 4 mil sacas de soja por ano, um prejuízo de R$ 1 milhão – protesta o agricultor Denis Antonio Golin, 58 anos.

Há dois anos, Golin luta na Justiça Federal para tentar retirar os índios da sua terra. Não tem tido sucesso em razão da situação jurídica confusa da área. O episódio é citado pelos vizinhos como exemplo do que pode acontecer a qualquer um deles, comenta Adair Beluso, 53 anos, que vive em uma propriedade de 20 hectares com a mulher, Antoninha, a filha, Elisa, 14 anos, e o filho, Ezequiel, 28 anos, que se formou técnico agropecuário e voltou para casa a fim de ajudar na modernização da propriedade da família.

– Deixei o emprego para vir ajudar o pai. Tivemos de parar de investir por não saber o que irá acontecer – diz o agrônomo.

Alguns agricultores concordaram em pagar uma espécie de “aluguel” das próprias terras aos índios para não serem incomodados. ZH conseguiu falar com um deles, na condição de não revelar o seu nome. Ele disse que, para continuar morando e trabalhando na propriedade, dá uma percentagem da colheita para os indígenas. Bem articulado e informado, o cacique Franco nega a extorsão. Afirma saber que a incerteza causa medo nos colonos. Mas que também apavora as famílias indígenas.

– Colonos conseguiram expulsar daqui os nossos pais. Agora, eles não conseguirão nos tirar daqui, eles é que vão sair – promete.

O cacique pretende iniciar nas próximas semanas o processo de desintrusão (retirada das famílias de colonos) do Passo Grande do Rio Forquilha. Na última semana, o boato de que havia índios armados na região se espalhou.

No Dia do Trabalho, os colonos se reuniram na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Houve a decisão de reforçar a vigilância.

– Para retirar os agricultores, é necessário que se complete o processo de reconhecimento da área como indígena. Isso não vamos permitir – aposta Sidimar Luiz Lavandoski, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura de Sananduva e diretor da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf-Sul).



Em Vicente Dutra, as faces do confronto



Há dois homens que evitam se cruzar na mesma calçada em Vicente Dutra, nas barrancas do Rio Uruguai, noroeste do Estado. São o agricultor Altair dos Santos Bueno, 49 anos, o Palmeira, e o cacique caingangue Roberto Carlos dos Santos, 42 anos.

A inimizade nasceu, cresceu e vem sendo nutrida por uma disputa de 715 hectares, travada desde de 2004 entre colonos e indígenas. Além das propriedades rurais, a terra reivindicada pelos indígenas atinge o empreendimento Águas do Prado, que tem 250 cabanas e recebe 600 turistas por ano.

Em 1997, 40 famílias de caingangues chegaram à cidade reivindicando a terra, que teria pertencido aos seus antepassados. Em 2004, o Ministério da Justiça assinou uma portaria declaratória reconhecendo o direito dos índios. A área foi demarcada pelo governo em 2012, e o passo seguinte seria indenizar as 60 famílias de agricultores pelas benfeitorias nas propriedades. Por pressão das entidades que defendem os colonos, não houve indenização, e o processo de assentamento dos índios parou.

Enquanto isso, os caingangues vivem em uma vila que ocupa dois hectares, à beira do Rio dos Índios. Bueno tem 37 hectares de terra no interior da área reivindicada e se posiciona fortemente contra as intenções dos índios, inclusive fazendo discursos inflamados nas reuniões dos colonos.

A REAÇÃO

Em novembro do ano passado, os caingangues invadiram o balneário e trancaram estradas ao redor da cidade. Na ocasião, Bueno fazia um bico de segurança. Ele foi agredido pelos índios – não pela função que exercia, mas pelo posicionamento assumido em público – e sofreu vários cortes de faca e perfurações de lanças, como mostram as cicatrizes. O índios invadiram e vandalizaram 103 cabanas e colocaram fogo em uma. Uma parte dessa história está no boletim de ocorrência feito por Neli Pinton, tesoureira do balneário.

Os colonos reagiram. Um grupo de 400 moradores se reuniu e cercou os índios. Havia gente armada dos dois lados, lembram o prefeito da cidade, João Paulo Pastorio, e o cacique Santos. Não houve uma tragédia porque os dois grupos tomaram consciência de que aconteceria uma carnificina, recorda Valdeci Steffen, 44 anos, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais.

– O que aconteceu em Faxinalzinho (a morte de dois agricultores em conflito com os índios) nos lembrou que podemos ter outro confronto aqui e talvez não tenhamos a mesma sorte da última vez, quando não houve tragédia – preocupa-se Steffen.

Ao conversar sobre o que aconteceu no ano passado, o cacique Santos culpa a pressão dos políticos pela interrupção do processo de assentamento dos índios. E descreve a situação em Vicente Dutra como um barril de pólvora, com um pavio curto aceso.

– Uma hora um índio e um colono podem se cruzar aí pela rua e olhar um na cara do outro e acabar se matando. Isso pode ser o estopim de uma grande briga – imagina o cacique.



Uma localidade chamada Bugre Morto


Há menos de um ano, na beira da estrada que liga Passo Fundo a Pontão, nasceu o acampamento indígena do Butiá. Ali, um aglomerado de famílias caingangues reivindica a posse de 35 mil hectares de terra que teriam sido ocupados por antepassados nos anos 1930. Eles teriam sido expulsos com a chegada dos colonizadores.

– Os índios abandonaram a área porque um fazendeiro da região convidou a tribo para um churrasco. A carne havia sido envenenada, e muitos caingangues morreram – afirma o cacique do acampamento, Amandio Vergueiro, 75 anos, veterano na luta pela retomada de áreas indígenas.

Nas proximidades do acampamento, há uma comunidade chamada Bugre Morto, que teria ganho esse nome em razão do episódio do churrasco, segundo o cacique. A história contada por Vergueiro é difícil de ser comprovada. Mas, para os caingangues, o relato é real e serve de mote para fortalecer a luta pela terra. Muitos acampamentos como o Butiá surgem sob a inspiração de histórias antigas. Geralmente, os índios que vão para os acampamentos reivindicar terras fogem de conflitos familiares onde viviam.

E, diferentemente dos índios que vivem em reservas oficiais – áreas protegidas pela União –, os que se alojam em acampamentos para disputar terras estão fora dos programas governamentais que apoiam os indígenas.

Conforme Vergueiro, o acampamento é um cutelo no meio das costelas dos que tomaram as terras dos índios. Não deixa de haver verdade nisso. Sempre que um acampamento consegue sobreviver e chama atenção das autoridades, sua presença desvaloriza o preço das terras vizinhas.


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