domingo, 11 de maio de 2014

TENSÃO NO CAMPO

ZH 10/05/2014 | 15h01

por Carlos Wagner

Tensão no campo

Como vivem índios e colonos nas terras em disputa no RS. ZH visitou áreas de conflito em Vicente Dutra, Pontão e Sananduva


Caingangues e agricultores admitem abertamente que estão portando armas
Foto: Carlos Macedo / Agencia RBS


Na longa e sangrenta história dos conflitos entre caingangues e agricultores no Rio Grande do Sul, a morte a tiros e pauladas dos irmãos Alcemar e Anderson de Souza, em Faxinalzinho, pelos indígenas, é um capítulo novo e diferente. É a primeira vez que os dois lados admitem a posse de revólveres e espingardas.

A radicalização da luta nasceu em 2003, segundo estudos dos professores Henrique Kujawa, da Faculdade Meridional-IMED de Passo Fundo, e João Carlos Tedesco, da Universidade de Passo Fundo (UPF), organizadores do livro Conflitos Agrários no Norte Gaúcho: Índios, Negros e Colonos. A Constituição de 1988 assegurou aos índios a retomada de suas terras que haviam sido usadas para colonização - em sua maioria, reservas já demarcadas. Nos anos 1960, o governo gaúcho usou reservas indígenas para fazer reforma agrária, como é o caso da Serrinha, em Ronda Alta. Os caingangues conseguiram retomar Serrinha e outras reservas, um sucesso explicado pelo direito líquido e certo à terra, na opinião do professor Kujawa. O governo federal indenizou os colonos desalojados pagando benfeitorias, e o governo do Estado, a terra.


A retomada das antigas reservas indígenas no Rio Grande do Sul terminou no começo dos anos 2000. Foi quando líderes caingangues partiram na busca de terras que não tinham sido reservas indígenas oficiais. Mas, em locais onde seus antepassados haviam acampado, a presença era comprovada por laudos dos antropólogos da Fundação Nacional do Índio (Funai). Os agricultores se organizaram e trancaram o processo de retomada das terras. Em consequência, os acampamentos indígenas proliferaram pelo Rio Grande do Sul: hoje somam 19, pelas contas dos técnicos da Funai. Mas o número pode ser bem maior porque surgem e desaparecem com incrível velocidade.

As áreas de disputa visitadas por ZH




Há uma estimativa de que, a um raio de cem quilômetros de Passo Fundo, existam 102 acampamentos de índios. Segundo o cacique Deoclides Paula, 42 anos, do acampamento de Votouro Kandoia, de Faxinalzinho, hoje 10 mil índios, dos 35 mil que vivem no Estado, estão acampados e em disputa por terra com os agricultores.

Não há confirmação oficial do número dos índios em luta pela terra. Mas são muitos, admite Roberto Perin, coordenador regional da Funai, em Passo Fundo. A luta entre colonos e índios saiu do controle dos governos. A guerra é alimentada pela pressão política dos grupos que apoiam cada um dos lados. De parte dos índios, o principal aliado é o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à ala progressista da Igreja. A face invisível são os burocratas incrustados no serviço público federal. Ao lado dos colonos, estão os setores conservadores da Igreja, sindicatos patronais e, novidade surpreendente, a Fetraf Sul, organização de esquerda ligada à Central Única dos Trabalhadores (CUT). Os dois irmãos mortos Em Faxinalzinho são as mais recentes vítimas do fogo cruzado desse conflito que não tem desfecho à vista.

Sananduva: o conflito que dura uma década
Emboscadas, extorsão, comentários preconceituosos, boatos sobre invasões e pessoas apavoradas. Essa é a realidade entre colonos e índios caingangues envolvidos na disputa por 1,9 mil hectares em Passo Grande do Rio Forquilha, lugarejo entre Sananduva e Cacique Doble, cidades agrícolas no norte do Estado. O enfrentamento já dura uma década, mas nos últimos dois anos se intensificou, com uma clima de confronto iminente.

Parte dos índios envolvidos na disputa saiu da reserva indígena de Charrua, próximo a Sananduva. Até a semana passada, eles tinham invadido e se apropriado de quatro áreas dos colonos que somam 160 hectares, onde vivem 117 famílias caingangues.

Nos 1,9 mil hectares disputados, moram 152 famílias de pequenos agricultores. A última invasão dos índios foi na terceira semana de abril, quando eles ocuparam as instalações da Capela Bom Conselho — salão paroquial, cemitério e campo de futebol —, distante cerca de 15 quilômetros do centro da cidade.

— A capela é um símbolo para a comunidade. É um absurdo o que estão fazendo — queixa-se o agricultor Oilson Predobom.


Índios acampam em salão paroquial | Foto: Carlos Macedo



Leonir Franco, 24 anos, é o cacique do acampamento Passo Grande do Rio Forquilha. Cercado por seus guerreiros e sentado à mesa no meio do salão paroquial — que foi transformado em um grande dormitório para as famílias indígenas —, ele disse saber do simbolismo do local para os colonos. Lembra, contudo, que nos anos 1940, quando agricultores se estabeleceram na área, expulsaram índios que viviam caçando, pescando e trabalhando para os ervateiros — pessoas que colhiam folhas de erva-mate.

Duas índias idosas, Eva Pinto e Jandira dos Santos, relatam a Zero Hora as suas lembranças da infância vivida com os pais na região.

— Assim que os madeireiros começaram a derrubar o mato, nós fomos corridas daqui — recorda Jandira.

Franco acrescentou ao comentário da índia:

— Os agricultores passaram o arado por cima dos cemitérios indígenas e não deixaram nenhum rastro.

Cabo de guerra

A pedido dos caingangues, os antropólogos da Fundação Nacional do Índio (Funai) fizeram uma pesquisa no Passo Grande do Rio Forquilha e encontraram vestígios de que ali viveram povos indígenas. O resultado do trabalho virou um estudo aceito, em 2011, pelo Ministério da Justiça, que publicou uma portaria declaratória reconhecendo a área como ocupação tradicional indígena — na prática, o passo final de um longo processo para retirada dos colonos do local. No ano passado, por pressão da Fetraf-Sul e outras organizações, o governo federal suspendeu as fases seguintes do processo de retomada da área, que são a demarcação da gleba e o levantamento das benfeitorias das propriedades para serem indenizadas. Em protesto, o cacique Franco iniciou a demarcação da área por conta própria.

— Eles invadiram 12 hectares da minha propriedade e estou deixando de colher 4 mil sacas de soja por ano, um prejuízo de R$ 1 milhão — protesta o agricultor Denis Antonio Golin, 58 anos.



Há dois anos, Golin luta na Justiça Federal para tentar retirar os índios da sua terra. Não tem tido sucesso em razão da situação jurídica confusa da área. A situação é citada pelos vizinhos como exemplo do que pode acontecer a qualquer um deles, comenta Adair Beluso, 53 anos, que vive em uma propriedade de 20 hectares com a mulher, Antoninha, a filha Elisa, 14 anos, e o filho Ezequiel, 28 anos, que se formou técnico agropecuário e voltou para casa a fim de ajudar na modernização da propriedade do pai.

— Deixei o emprego para vir ajudar o pai. Agora tivemos de parar de investir por não saber o que irá acontecer amanhã — comenta o agrônomo.

O pai de Ezequiel reclama que a presença dos índios fez naufragar o projeto de desenvolvimento da propriedade da família, que produz leite, soja e milho. Ele acredita que a única maneira de solucionar o problema e juntar-se ao grupo de agricultores que se organizou para deter o avanço das invasões dos índios é realizar protestos para pressionar o governo a recuar na intenção assentar os caingangues na área.

Os caingangues vieram para ficar

Há vários agricultores que não estão fazendo protesto porque concordaram em pagar uma espécie de "aluguel" das próprias terras aos índios para não serem incomodados. ZH conseguiu falar com um deles, na condição de não revelar o seu nome. Ele disse que, para continuar morando e trabalhando na propriedade, dá uma porcentagem da colheita para os indígenas. Bem articulado e informado, o cacique Franco nega que os índios estejam extorquindo os agricultores. Afirma que sabe que a incerteza causa medo nos colonos. Mas que também apavora as famílias indígenas, que temem ser atacadas pelos agricultores.

— Antigamente, os colonos conseguiram expulsar daqui os nossos pais. Agora, eles não conseguirão nos tirar daqui, eles é que vão sair — promete.


Lavandovski (E) e Golin questionam demarcação | Foto: Carlos Macedo



Para apressar o processo, o cacique tem a intenção de iniciar nas próximas semanas o processo de desintrusão (retirada das famílias de colonos) do Passo Grande da Forquilha. Na última semana, o boato de que bandos de índios armados estariam circulando pela região para fazer a desintrusão espalhou-se com rapidez entre as famílias de agricultores.

No feriado do Dia do Trabalho, os colonos se reuniram na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. A situação foi discutida, e houve a decisão de reforçar a vigilância aos movimentos dos índios.

— Para retirar os agricultores, é necessário que se complete o processo de reconhecimento da área como sendo indígena e ele seja homologado. Isso não vamos permitir — aposta Sidimar Luiz Lavandoski, presidente do Sindicado dos Trabalhadores da Agricultura de Sananduva e coordenador de Conflitos Agrários da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf-Sul).

Vicente Dutra, o município sobre um barril de pólvora

Há dois homens que evitam se cruzar na mesma calçada em Vicente Dutra, nas barrancas do Rio Uruguai, noroeste do Estado. São o cacique caingangue Roberto Carlos dos Santos, 42 anos, e o agricultor Altair dos Santos Bueno, 49 anos, o Palmeira.


Altair mostra cicatrizes de confrontos do passado | Foto: Carlos Macedo



A inimizade deles nasceu, cresceu e vem sendo nutrida por uma disputa de 715 hectares, travada desde de 2004 entre colonos e indígenas. Além das propriedades rurais, a terra reivindicada pelos indígenas atinge o empreendimento Águas do Prado, que tem 250 cabanas e recebe 600 turistas por ano. Em 1997, 40 famílias de caingangues chegaram à cidade reivindicando a terra, que teria pertencido aos seus antepassados. Em 2004, o Ministério da Justiça assinou uma portaria declaratória reconhecendo o direito dos índios. A área foi demarcada pelo governo em 2012, e o passo seguinte seria indenizar as 60 famílias de agricultores pelas benfeitorias feitas nas propriedades. Por pressão das entidades que defendem os colonos, a indenização não aconteceu, e o processo de assentamento dos índios parou. Enquanto isso, os caingangues vivem em uma vila que ocupa dois hectares, à beira do Rio dos Índios. Santos tem 37 hectares de terra no interior da área reivindicada e se posiciona fortemente contra as intenções dos índios, inclusive fazendo discursos inflamados nas reuniões dos colonos.

Em novembro do ano passado, os caingangues invadiram o balneário e trancaram estradas ao redor da cidade. Na ocasião, Bueno fazia um bico de segurança. Ele foi agredido pelos índios — não pela função que exercia, mas pelos discursos inflamados — e sofreu vários cortes de faca e perfurações de lanças, como mostram as cicatrizes. O índios invadiram e vandalizaram 103 cabanas e colocaram fogo em uma. Uma parte dessa história está no boletim de ocorrência feito por Neli Pinton, tesoureira do balneário.

A reação

Os colonos reagiram. Um grupo de 400 moradores se reuniu e cercou os índios. Havia gente armada dos dois lados, lembram o prefeito da cidade, João Paulo Pastorio, e o cacique Santos. Não houve uma tragédia porque os dois grupos tomaram consciência de que aconteceria uma carnificina, recordou Valdeci Steffen, 44 anos, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais.

— O que aconteceu em Faxinalzinho (a morte de dois agricultores em conflito com os índios) nos lembrou que podemos ter outro confronto aqui e talvez não tenhamos a mesma sorte da última vez, quando não houve tragédia — preocupou-se Steffen.

Ao conversar sobre o que aconteceu no ano passado, o cacique Santos culpa a pressão dos políticos pela interrupção do processo de assentamento dos índios. E descreve a situação em Vicente Dutra como um barril de pólvora como um pavio curto aceso.


O cacique Roberto Carlos | Foto: Carlos Macedo



— Uma hora um índio e um colono podem se cruzar aí pela rua e olhar um na cara do outro e acabar se matando. Isso pode ser o estopim de uma grande briga — imagina o cacique.

A imaginação dos agricultores também é povoada por pensamentos semelhantes aos do líder indígena. O casal de colonos Clodomiro e Marlene Antunes tem uma propriedade de 90 hectares dentro das terras reivindicadas pelos índios. O marido faz parte da comissão de agricultores que luta na disputa das glebas com os caingangues.

— Nós e os índios somos adversários obrigados a conviver juntos. Isso só pode terminar mal, rezo para que não se repita o que aconteceu em Faxinalzinho — acredita.

A vida parou

Na terra disputada pelos índios, pelos colonos e pela Associação dos Amigos da Água do Prado, proprietária do empreendimento, a vida econômica parou. As propriedades rurais estão virando favelas, como descreveu Nelci Almeida, 45 anos, que vive em 12,5 hectares com a mulher, Eliene Gonçalves, e três filhos — entre eles Luana, companheira de Valdir Doarte, 27 anos.

— Nós não pintamos a casa. Não reformamos as máquinas agrícolas. O mato está crescendo na lavoura. É como se a nossa vida tivesse sido congelada — compara Nelci.

Eliene lembra que, quando transita do centro da cidade até a sua casa, passa pela frente da área indígena e sempre ouve piadinhas. Uma das culturas fortes na área é a plantação de porongos usados para fazer cuias de chimarrão, e há várias pequenas indústrias da região que são abastecidas pela produção local. O agrônomo e empresário Jairo André Julio, 23 anos, diz que a família tem tradição no cultivo de porongo, um negócio que gera 300 empregos nas cidades próximas.

— As plantações de porongos vão ficar para os índios. O que vai sobrar para nós?

Em Pontão, indígenas reivindicam 35 mil hectares

Há menos de um ano, na beira da estrada que liga Passo Fundo a Pontão, nasceu o acampamento indígena do Butiá. Ali, um aglomerado de famílias caingangues reivindica a posse de 35 mil hectares de terra que teriam sido ocupados por antepassados nos anos 1930. Eles teriam sido expulsos com chegada dos colonizadores.


Acampamento Butiá, em Pontão | Foto: Carlos Macedo



— Os índios abandonaram a área porque um fazendeiro da região convidou a tribo para um churrasco. A carne havia sido envenenada, e muitos caingangues morreram — afirma o cacique do acampamento, Amandio Vergueiro, 75 anos, um veterano na luta pela retomada de áreas indígenas.

Nas proximidades do acampamento, há uma comunidade chamada Bugre Morto, que teria ganho esse nome em razão do episódio do churrasco, segundo o cacique. A história contada por Vergueiro é difícil de ser comprovada. Mas, para os caingangues, o relato é real e serve de mote para fortalecer a luta pela terra. Muitos acampamentos como o Butiá surgem sob a inspiração de histórias contadas pelos antigos. Geralmente, os índios que vão para os acampamentos reivindicar terras estão fugindo de conflitos familiares nas regiões onde viviam.

E, diferentemente dos índios que vivem em reservas oficiais do governo — áreas protegidas pela União —, os que se alojam em acampamentos para disputar terras estão fora dos programas governamentais que apoiam os indígenas.

Na definição do cacique Vergueiro, o acampamento é um cutelo no meio das costelas daqueles que tomaram as terras dos índios. Não deixa de haver verdade nessa visão. Sempre que um acampamento consegue sobreviver e chama atenção das autoridades para suas reivindicações, sua presença desvaloriza o preço das terras vizinhas.

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